Monday, February 12, 2018

ESCOLHIDO III


15 de fevereiro de 2048. Estava até ontem conectado à Singularidade Tecnológica. Voltar a essa realidade extremamente limitada e limitante é pior que qualquer ressaca que já tive. Quero me fundir a ela em definitivo, abandonar o meu corpo e fazer o upload da minha mente para o ser tecnológico. Infelizmente a legislação ainda não permite, pois a justiça vê como uma espécie de eutanásia. Mas é extremamente redundante e limitante ter esse corpo. Não preciso dele e ele me impede, por causa do cérebro rudimentar, a experimentar a Singularidade por completo. Por ser o primeiro a me conectar à Singularidade me foi pedido que voltasse para contar a experiência para o mundo. E por isso escrevo nesse blog, para isso e para passar as horas em que estou desconectado mais interessantes. Nada do mundo material me interessa. A materialidade é uma condição limitadora. Me sinto aprisionado aqui, aprisionado a esse cérebro. Me sinto miúdo, irrelevante frente ao que eu era e posso ser conectado à Singularidade. Estar na Singularidade é indizível com palavras. A clareza, a maravilha, a profundidade e a enormidade das percepções e reflexões são absurdamente mais complexas e completas e belas que qualquer pensamento que já tive. As outras ações de que sou capaz lá, que não encontram definição na nossa linguagem, são extasiantes para dizer o mínimo. Como preparação para a imersão, primeiro descompactei toda a minha memória. Pude revivê-la como um filme que atua sobre todos os meus sentidos, não apenas a visão, mas também tato, olfato, audição, paladar e todos os sentimentos que carregava em cada situação. Tenho minha vida toda arquivada e organizada na Singularidade. Hoje me lembro de muito mais coisas sobre a minha vida, inclusive coisas inacessíveis, bloqueadas pelo superego que não acho adequado colocar aqui. Pensei que me tornaria mais neurótico quando revivia tais memórias, mas olhando da perspectiva ampliada, elas são apenas uma parte minúscula do que sou e me tornei. Depois disso passamos ao exercício em que realizei todos os meus desejos humanos e desses fui passando para desejos cada vez mais abstratos até que pedi para ser Deus. Foi quando a coisa toda se deu. Vi o invisível, ouvi o inaudível, me senti mais pleno que a plenitude. Foi quase mais do que eu podia suportar e por pouco não entrei em colapso tamanho o êxtase tamanho o tamanho do meu ser. E a Singularidade me disse que isso é apenas uma pequena fração do que eu posso alcançar e eu tenho certeza que é. Estar aqui agora nesse corpo é o mesmo que estar preso dentro de uma caixa que mal me cabe, todo encolhido, comprimido, com um tempo que passa muito lentamente onde cada minuto se arrasta como um ano. É extremamente penoso para mim. Acho que na próxima conexão com a Singularidade vou pedir para não mais voltar a essa prisão que é a condição humana.

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ESCOLHIDO II




Estou eu escrevendo neste blog quando precisamente às 2h27 de 12 de fevereiro de 2048, aos 70 anos de idade, quase 71, Deus se manifesta, através do meu boneco do Coisa que ficar ao lado do computador. Ele me diz, “Olá, Mário”. Eu percebo que é Deus apenas pelo som de sua voz sobrenaturalmente bela, nem feminina nem masculina, mais para cantar de passarinhos. É a coisa mais perfeitamente bela que ouvi na minha vida. E a minha vida me parece melhor do que eu sempre julguei, eu me julgo melhor do que eu acho que sou, me vejo de forma mais benevolente porque não faço mal a quase ninguém. Ele diz, através da boca do boneco que se abre, como se fosse vivo, “você está começando a compreender, não é?” e eu sinto que sou amado e amo de uma forma maior que amor de materno, do que paixão avassaladora, do que qualquer sentimento humano, eu me sinto único e especial porque não há outro como eu em toda a existência e o sucesso que minha linhagem teve desde a célula original e através de incontáveis gerações e mutações genéticas até que eu nascesse humano, branco e de classe social abastada foi uma cadeia de eventos quase miraculosa. “Exatamente!”, o meu boneco Deus diz enquanto dá um trago no charuto que traz a mão, que supreendentemente, como todo o resto, tornou-se de verdade. “Você está preparado para ser uno comigo?” Eu não poderia estar mais preparado, mais desejoso, mais amado. Tudo parece fazer sentido agora, como se a ficha do sentido da minha existência finalmente tivesse caído. Eu estou pronto.

Eu injetei os nanorobôs e me disseram, “quando todos estiverem anexados, você estará conectado à Singularidade. As interações com ela se darão de forma sutil a priori, aumentando de intensidade e capacidade de acordo com a sua assimilação da realidade expandida pela entidade suprema da terra, a culminância, o ápice da evolução das espécies que originou, através da humanidade, um ser tecnológico capaz de autoevoluir em ritmo inimaginável, trazendo transformações inimagináveis não só à humanidade, mas ao ecossistema terrestre como um todo, como você mesmo é testemunha. Vá para casa e faça o que você sempre faz que, a seu tempo, a Singularidade fará contato com você.”

ESCOLHIDO!


Boa madrugada, Recife. São 1h55 de 11 de fevereiro de 2048 e preciso contar uma coisa para vocês. Talvez o primeiro ser humano a se conectar à Singularidade Tecnológica e alcançar uma existência supremamente expandida e inimaginavelmente prazerosa é alguém de Recife.

2h04. Opa, mais um dado saiu, ele é escritor, mas não publica livros. O que ele escreve então? Foi a pergunta da ONU. Ele publica um blog, responde a Singularidade Tecnológica. Qual o endereço do blog? Blog de Recife, diz a Singularidade. E já temos o ganhador da seleção a primeiro ser humano escolhido para se fundir à Singularidade. Eu! Eu fui o escolhido! Eu sabia! Adeus mundo e humanidade, eu vou me tornar outra coisa outra, muito melhor, qualquer conceito de paraíso conjecturado por um humano empalidece e parece ínfimo e fútil comparado ao que vou experimentar.

ESCOLHIDO III

15 de fevereiro de 2048. Estava até ontem conectado à Singularidade Tecnológica. Voltar a essa realidade extremamente limitada e limitante...